Samuel Ferreira

Leitmotiv
Aqueles que são muito preguiçosos e confortáveis para pensar por si mesmos e serem seus próprios juízes obedecem às leis. Outros sentem suas próprias leis dentro deles. (Hermann Hesse)

Por volta de 4,5 bilhões de anos atrás, o Sistema Solar era uma espécie de pinball ou jogo de bilhar, e nesse gigantesco jogo, corpos celestes se deslocavam pelo espaço, chocavam-se entre si, destruindo-se e constituindo outros corpos celestes. Assim é explicada e aceita a teoria atual do surgimento e formação da Lua e do atual posicionamento do Planeta Terra no Sistema Solar. Segundo as teorias e concepções mais aceitas, por volta de 4 bilhões de anos atrás um Planeta chamado Theia teria colidido com a Terra. Com essa colisão, parte do corpo celeste formou a Lua. A outra parte ajudou a formar boa parte da estrutura continental de nosso planeta. Parte destes pedaços de Theia, também podem ser encontrados em uma camada muito profunda da formação geológica do nosso planeta, próxima ao núcleo da Terra. Porém, uma das questões mais importante desta colisão está na constituição do que chamamos de eixo terrestre e os movimentos da Terra com base nesse eixo.
Mas é bem provável que o choque produzido por Theia na Terra, tenha sido responsável principalmente pela existência das estações do ano, e consequentemente, pelo surgimento e desenvolvimento da vida na Terra, que depende principalmente de condições climáticas diferentes e fenômenos astronômicos diversos, pois os mesmos são o fruto da movimentação do nosso planeta na sua própria órbita e na órbita solar. As diferenças entre os hemisférios, a movimentação que a Terra faz (em relação a si mesma e ao Sol), a presença da Lua e sua influência nos Oceanos e as estações do ano, foram as consequências de uma colisão catastrófica há bilhões de anos atrás. Portanto, foi através desta colisão que talvez a vida tenha se desenvolvido de forma tão diversa em nosso planeta.
Corta.
Quando penso nas estações do ano e a relação com o cinema, o diretor sul-coreano Kim Ki-Duk (1960 – 2020) é uma referência poderosa para mim. Nas suas obras, o diretor trabalha muito na direção da relação impiedosa e maravilhosa da “roda da vida”, ou seja, a importância das questões cíclicas na constituição da vida, seja humana ou não-humana. A sua obra-prima “Primavera, Verão, Outono, Inverno e ...Primavera “ de 2003, caminha por esse mesmo caminho, e é visceral ao retratar a força da vida, a potência das estações por mais que queiramos escapar daquilo que é inerente a condição humana. No longa dirigido pelo sul-coreano, sem tentar dar spoiler, vemos dois monges retirados que vivem em uma casa, no meio de um lago cercados por montanhas, tentando observar e perceber a vida distantes dos aglomerados urbanos. Em que pese, mesmo neste distanciamento territorial e social, Kim Ki Duk demonstra que a vida, o tempo e as estações são implacáveis para todos e todas. Ninguém escapa das transformações, das tragédias, dos sofrimentos, dos desejos, paixões e das tentativas de experienciar o ciúmes, o medo, a culpa e etc.
Primavera, Verão, Outono, Inverno e ...Primavera, é uma releitura sempre atual da dinâmica atual da vida, principalmente em tempos em que achamos que tudo é controlável, diagramável, configurável, instagramável, ou seja lá a formatação necessária para a agradar os padrões limitadores da vida na atualidade.
Corta.
Há alguns meses, a velejadora Tamara Klink, com uma coragem inimaginável, aos 26 anos navegou por 20 dias da França à Groenlândia, escolheu um fiorde, ancorou seu barco, que virou sua casa. E ali, Tamara viu as estações mudarem e se tornou a primeira mulher a invernar sozinha no Ártico (pelo menos que se tenha notícia). Nesta Invernagem, Tamara trouxe inúmeras reflexões das dificuldades e problemáticas que passou nesse período. Dentre eles destaco:
“Eu fiquei presa no gelo seis meses. Eu cheguei na Groelândia um ano atrás e passei oito meses em isolamento, ancorada nesse fiorde, esperando o mar congelar e descongelar depois (...) Eu precisei aprender a costurar minha própria pele, caso eu tivesse um corte e precisasse recosturar. Também tive que fazer treino de tiro. Faz parte da preparação obrigatória para a gente ir para um lugar onde pode ter urso polar (...) Quando eu pisei num desses pedaços, ele abriu e eu caí na água. Eu não tive medo, eu não tive dor, eu não tive frio. Eu só tive uma concentração absoluta em encontrar uma maneira de sair da água o quanto antes. Eu comecei a me arrastar, me puxar, a criar buracos no gelo podre para ter lugares onde me prender. E aos pouquinhos, eu consegui me arrastar.”
Logicamente que precisamos desromantizar várias questões que foram levantadas, mas o ponto nevrálgico de toda a reflexão que Tamara traz é o que ela defende como “exercitar a musculatura da frustração”, e isso me pegou. Me parece que em uma sociedade aonde a cultura da felicidade é quase que uma imposição para todas e todos, a frustração aparece e tem se demonstrado como uma implacável inimiga. Logicamente que não sou contra a felicidade (até porque a felicidade é algo bem relativo), mas parece que hoje há uma tendência em que a nossa vida não pode ter sofrimento, tristezas, decepções, derrotas, ou seja lá o que pode nos tirar fora da cultura da felicidade. Como a velejadoras nos confronta (eu me sinto confrontado), é necessário que venhamos a “exercitar a musculatura da frustração” não somente para a nossa sobrevivência em uma invernagem no Ártico ou em nossas crises cotidianas, mas principalmente para que possamos aprender a sermos felizes.
Ou como escreveu o filósofo espanhol Santiago Beruete :
“A decepção está na vida. Ou você vive isso ou sente falta de alguma coisa. Devemos viver sem muito medo, mas sem esperança, porque as expectativas são o germe do nosso desconforto. Viver decepcionado não é ruim, por que temos que viver entusiasmados? O entusiasmo coletivo me dá nos nervos.”
Corta.
Eu compreendo muito pouco da vida, mas compreendo que é necessário nos desacomodarmos para que surja alguma outra coisa em nós ou através de nós. Certamente que a colisão entre Theia e a Terra trouxe inúmeros desconfortos astrofísicos e geológicos, mas essa colisão foi imprescindível para que inúmeras outras realidades, expressões e estados surgissem e se formassem. Quanto mais tentamos compreender a vida e suas múltiplas faces, cada vez mais compreendemos que as explosões, colisões, crises e “frustrações” foram responsáveis por todas as grandes transformações.
Que me desculpem os hedonistas, mas acredito que a frustração, o sofrimento, a decepção e os problemas da vida são o nosso mais precioso Leitmotiv. Principalmente em direção à felicidade.
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